Ícone da luta por justiça social e contra violência na periferia, pe. Jaime morre aos 77 anos de infarto

Após 51 anos no Brasil, ele estava na terra natal, Irlanda; ele teve ação incansável por creche, UBS, moradia, transporte em Embu e contra mortes de jovens no Jd. Ângela

Especial para o VERBO ONLINE

Padre Jaime, com camiseta contra racismo e em ato na paróquia; ele ajudou famílias de Embu a ter serviços básicos e fundou fórum contra assassinatos no Jd. Ângela | Divulgação

O padre Jaime Crowe morreu nesta segunda-feira (20), na Irlanda, o país-natal, aos 77 anos, de infarto, segundo informe da Sociedade Santos Mártires, que fundou. Ele teve atuação incansável por direitos sociais como creche, escola, habitação, serviços de saúde e contra a violência na periferia da zona sul de São Paulo e na região, por mais de 50 anos – ele iniciou em Embu das Artes a luta por serviços básicos e abriu o vasto trabalho social pelo qual ficou conhecido no Brasil.

Jaime (James) trabalhou 51 anos no Brasil. Ordenado em abril de 1969, aos 24 anos, pela Sociedade São Patrício, ele – movido pelo chamado do papa Paulo 6º para evangelizar na América Latina – chegou ao país em novembro daquele ano. Um dos locais da periferia “lascada” da metrópole de São Paulo, Embu foi o primeiro destino. Após breve período na igreja no centro, ele logo assumiu a paróquia em região paupérrima e violenta da cidade, a Todos os Santos, no Santa Emília.

Na época, a partir de 1970, quando Embu só tinha uma paróquia na periferia, Jaime era responsável por várias comunidades em imenso território, totalmente desprovido dos serviços mais elementares. Inspirado e apoiado pela então cardeal-arcebispo dom Paulo Evaristo Arns, ele começou a conscientizar e mobilizar os moradores para reivindicar asfalto, água encanada, moradia, transporte, creche e posto de saúde – ao lado do padre Eduardo McGettrick e de freiras.

“Padre Jaime sempre nas celebrações usava uma linguagem simples, trazendo as leituras da Bíblia para o nosso dia a dia. Promovendo reflexões, falava da importância da participação nas decisões políticas da cidade para que todos os moradores tivessem os mesmos direitos, acesso a educação, saúde, transporte, moradia… Ele foi um semeador de esperança, transformou a vida das pessoas das periferias”, disse a ex-vereadora de Embu Maria das Graças ao VERBO.

Jaime conciliava a ação social com a missão “religiosa”, não distinguia realizar sacramentos e lutar em promoção de vida digna aos moradores, independente de religião. Em 2019, em uma missa, o fiel Marcelo Marques encontrou o especial sacerdote. “Tive a oportunidade de agradecê-lo por ter me batizado, na Igreja Santa Tereza, ainda comunidade, há mais de 30 anos, em 1986. Ele, feliz e emocionado, me abraçou com os olhos marejados”, disse.

“Trabalhei com ele em 1983 na Paróquia Santa Tereza em Embu das Artes! Um missionário extremamente comprometido com o Evangelho e as causas sociais”, ressaltou, sobre a comunidade à época, o fiel Silvio Florindo, de Taboão da Serra. O ex-vereador Cido, hoje morador de Taboão, também conheceu Jaime, por quem sempre teve admiração. “Tive o prazer de crescer no Jardim Ângela e ser uma das ovelhas do seu rebanho”, disse, sobre o próximo desafio do religioso.

Em 1987, Jaime se transferiu para a Paróquia Santos Mártires, no “fundão” da zona sul da capital, onde se propôs a realizar o mesmo trabalho de Embu. “Passamos a responder às necessidades de cada momento. Criamos uma creche, onde a igreja tinha espaço, e núcleos educativos para atender adolescentes”, disse. Ele se viu, porém, diante de dificuldade muito maior, enfrentar uma espécie de “genocídio” de jovens pobres, mortos por traficantes ou policiais criminosos.

Cansado de ir encomendar o corpo de assassinados, Jaime viu que o trabalho feito não bastava. Em 1996, o Jardim Ângela teve o título de lugar mais violento do mundo, segundo a ONU, com 116,23 homicídios por 100 mil habitantes. Jaime idealizou o Fórum em Defesa da Vida, com mais de 200 entidades locais. O grupo foi atrás de respostas para as demandas da população identificadas nas reuniões mensais, a partir de três eixos: segurança, acesso à Justiça e educação.

O foco inicial foi segurança, por questão de sobrevivência. Ainda em 1996, o fórum criou a Caminhada pela Vida e pela Paz (de 6 km), sempre no Dia de Finados, até o Cemitério São Luís. “É o cemitério no Brasil com o maior número de mortos por armas de fogo, e o terceiro na América Latina”, disse Jaime, em 2004. Em 1996, 5 mil pessoas vestidas de branco percorreram as ruas do bairro para pedir paz. O ato visava dar visibilidade ao enfrentamento da chaga social.

Em 1998, o fórum conseguiu implantar a polícia comunitária. “Mas fizemos antes um treinamento de 15 dias, criando diálogo da polícia com a população. Depois de dois anos, a avaliação foi muito positiva. Passei a ouvir dos policiais: ‘Estou me sentindo gente, as pessoas me chamam pelo nome'”, contou. Naquele ano, em parceria com a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), criou a Ucad (Unidade Comunitária de Álcool e Drogas), para atender dependentes químicos.

Muitos outros projetos surgiram. O fórum implantou o “Reinserção do Adolescente na Comunidade”, de acompanhamento a jovens em liberdade assistida por crimes; “Moradia Assistida”, para dependentes químicos tentarem controlar o vício; o “Cuida”, de ajuda aos filhos dos drogaditos; a Casa Sofia, de assistência social, psicológica e jurídica para mulheres vítimas de violência doméstica, entre outros. A força do povo articulado ficou evidente com o “Tribunal Popular”, em 2002.

Após discutir durante semanas com 15 profissionais do direito (juízes, promotores, advogados) para encontrar uma saída legal para cobrar os governos a realizar ações efetivas, Jaime convocou a população para pressionar os dirigentes políticos. No “banco dos réus”, os secretários de Saúde e de Segurança ouviram ultimato: constroem mais postos de saúde e põem mais policiais na região ou os juristas e as mil pessoas presentes entrarão com ação civil contra o Estado.

Em menos de dois meses um terreno foi declarado de utilidade pública. Depois de seis meses o número de postos de saúde subiu de seis para 26 e o de policiais, de 30 para 500. “Na situação em que estamos, criança que não chora, não mama. Quem não grita, não leva”, justificou Jaime. Entre 2000 e 2004, após cincos anos iniciais do fórum, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes no Jardim Ângela caiu mais de 45%, de 118,31 para 64,5, segundo a Fundação Seade.

Após o fórum persistir na cobrança feita no tribunal, o Jardim Ângela, que era assistido só pelo Hospital do Campo Limpo, conquistou o Hospital M’Boi Mirim, seis anos depois, em 2008. Para conseguir as melhorias, Jaime – adepto da teologia da libertação (corrente católica que prega a religião como instrumento de transformação social) – nunca se negou a dialogar com políticos de linhas de pensamento antagônicas, embora ligado ao PT, que ajudou a fundar.

Em dissabor que não teria tido em toda a atuação como articulador social, em 2018, Jaime sofreu um “golpe”, espécie de “fogo amigo”, ao receber advertência pública da Diocese de Campo Limpo por apoiar o candidato a presidente Fernando Haddad (PT) durante a presença do político na paróquia. O bispo era dom Luiz Antônio Guedes, que, porém, não assinou a punição. Jaime se defendeu e disse que a missa ocorreu “sem nenhuma alteração litúrgica nem ato político”.

O episódio levou fiéis sem “viés de direita” a lembrar que Jaime nunca foi radical, a ponto de ter criticado o governo da prefeita Marta Suplicy (2001-2004), então do PT, pela morosidade em implantar projetos na região, como a viabilização do terreno para construção do próprio Hospital M’Boi Mirim. E em 2005, durante a 10ª Caminhada pela Paz, ele recebeu o então prefeito José Serrra (PSDB). No campo “pastoral”, ele ainda construiu 16 igrejas, das quais quatro viraram novas paróquias.

Em 27 de abril de 2019, Jaime celebrou 50 anos de sacerdócio e foi homenageado com a presença de “amigos de caminhada”, inclusive de Embu, e apresentação de bloco carnavalesco em batucada de samba para o irlandês mais brasileiro da vasta região sul da metrópole, mesmo ainda com sotaque carregado. Em maio de 2021, em meio à pandemia da covid-19, ele deixou a paróquia e o Brasil. Disse, “por questão de idade”, não ter “mais a mesma energia”.

Mesmo de partida, Jaime seguiu “brigador” pelo “seu povo”. Em 23 de março de 2021, indagado por este repórter sobre o governador João Doria (PSDB) ter anunciado a extensão da linha 5 do metrô até o Jardim Ângela com duas estações, ele declarou: “No projeto inicial eram três estações: Santo Dias, São José e Jardim Ângela. No projeto atual estão só duas estações: esqueci o nome da rua… [Comendador Santana] e Jardim Ângela. Quem sejam retomadas as três estações”.

OUÇA O PADRE JAIME EM MARÇO DE 2021; MESMO A DOIS MESES DE DEIXAR O BRASIL, ELE SEGUIA ‘BRIGADOR’ PELO ‘SEU POVO

VEJA NOTA DA SOCIEDADE SANTOS MÁRTIRES SOBRE A MORTE DO PADRE JAIME CROWE

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