ANA CAROLINA RODRIGUES
Especial para o VERBO ONLINE, em Embu das Artes
Um dia depois do sepultamento de Raquel Trindade, ícone de Embu das Artes e da cultura brasileira, a “discípula” Karla Magalhães, dançarina e coreógrafa formada pelas mãos da mestre, postou em uma rede social uma foto da casa da artista, no centro de Embu, e palavras cheias de saudade: “Neste momento vim fazer minha visita diária. Mas…”. A “Terra das Artes” vive “orfandade” de Raquel, que chegou a Embu em 1961 e nunca mais deixou, para ser “eterna”.
Artista plástica, folclorista, coreógrafa, escritora, professora e ativista do movimento negro e das religiões afro-brasileiras, Raquel morreu no domingo (15) aos 81 anos, em São Paulo, de infecção após cirurgia no coração. Após mais de 20 horas de velório, no Teatro Popular Solano Trindade, ao som de tambores e berimbaus, cerca de duas mil pessoas tomaram as ruas do centro de Embu em cortejo que saiu do teatro até o Cemitério do Rosário (centro).
Parentes e amigos caminharam com o caixão com o corpo de Raquel nos braços durante todo o trajeto, em cortejo emocionante e cheio de lembranças de uma multiartista, mas não triste. Grupos de maracatu acompanharam ao som dos tambores que deu ritmo ao povo que dançou e embelezou as ruas do centro histórico – a parada diante da antiga Igreja dos Jesuítas foi marcante. Raquel era uma mulher de muitos amigos, que tinha o dom de reunir as diversidades.
“A minha mãe tinha esse poder de juntar os inimigos. Aqui vem o prefeito da direita, vem o candidato da esquerda, vem o deputado do centro, vem o deputado que é contra todos eles, vem o povo anarquista”, frisou Vitor Trindade, diante da tarefa de manter o legado dela. “O legado maior é a possibilidade de manter essa cultura que vem do antepassado do meu avô, que conseguimos manter até hoje. Minha função é manter as coisas no mínimo como estão”, disse o filho.
Neto de Raquel, André Trindade ressaltou que a avó simboliza “uma história de luta, conhecimento, e consciência quanto à importância da arte para o povo e a valorização da arte que é passada de boca a boca, da arte que está para todo mundo”. “Ela representa não só a arte popular negra, mas a representação da ancestralidade e da integração”, disse. A artista exaltava os antepassados como o pai, o poeta Solano Trindade, e a mãe, a coreógrafa Maria Margarida.
Várias figuras da cultura regional compareceram ao adeus a Raquel, como a atriz Naruna Costa, da série de TV “Rota do Ódio”, e os o poetas Sergio Vaz, e Binho, do Sarau do Binho. “Raquel é uma mestra, uma representatividade de todo esse movimento cultural, herdou a herança de Solano e teve legado de luta, de resistência da cultura popular, um farol que temos que mirar sempre. Ela tinha o dom de agregar, você vê aqui todas as cores [etnias]”, destacou Binho.
“Ela é uma das figuras mais extraordinárias que conheci, trouxe na sua vida a essência de se dedicar à cultura popular afro-brasileira, dando sequência a um legado construído pelo pai, Solano. Raquel é uma referência nacional que a gente teve o privilégio de conhecer e conviver aqui em Embu das Artes”, disse o ativista do movimento negro Juninho. No domingo (22), às 19h30, na Igreja Nossa Senhora do Rosário (centro), será a missa de 7º dia da morte de Raquel.
LEIA DEPOIMENTOS DE ARTISTAS E ADMIRADORES DE RAQUEL TRINDADE NO ADEUS À MULTIARTISTA
RAQUEL TRINDADE POR KARLA MAGALHÃES (aluna e “discípula”) – “[Raquel Trindade] Para mim, significa tudo, é minha segunda mãe, quem me aconselhava, me orientava, qualquer dorzinha de barriga, ela me acudia. Foi quem me ensinou tudo o que sei sobre cultura popular. Eu a conheci há mais de 20 anos, aqui mesmo [Teatro Popular Solano Trindade], fui convidada a conhecer o teatro, eu pensava que era um teatro de artes cênicas. Quando cheguei aqui, me deparei com o pessoal todo vestido para o maracatu. A princípio, eu me assustei um pouco, como quem me ensinou sobre a cultura popular foi ela, eu não tinha noção do que era. Mas quando eu a vi foi amor à primeira vista, fui muito bem recebida. Depois desse dia, a gente nunca mais se separou. Em todas as atuações de dança aqui, eu estive. Com ela aprendi todo tipo de dança folclórica – bumba-meu-boi, maracatu, samba-de-lenço, jongo, outros que não vou lembrar, estou nervosa. No [bloco carnavalesco] Kambinda, sou porta-bandeira, com muita honra, e a gente vai buscar força para tentar continuar. Não da mesma forma, com a mesma sabedoria, expertise, mas da maneira que a gente conseguir. É uma honra para mim participar do grupo e da vida dela. Ela vai fazer uma grande falta. Agora,eu só espero a hora do nosso reencontro.”
RAQUEL TRINDADE POR RAQUEL ZAICANER (amiga, médica, secretária de Saúde de Taboão da Serra – escreveu em uma rede social sobre a xará: “Muito sal comido juntas. Vai com Deus!”) – “Raquel é uma mulher muito forte, de ideais muito fortes, de atitudes muito fortes. Foi difícil o nosso começo de história juntas, até porque sou viúva do ex-marido dela. Mas ao longo desses anos todos, a gente aprendeu muito uma com a outra, sobre tolerância, respeito, eu uma branca judia, ela uma negra do candomblé, eu atual mulher do ex-marido dela. Unimos nossas famílias, a minha filha e os filhos dela, eu e ela construímos uma nova relação, de cooperação, de amizade. Aqui sempre esteve o pessoal das comunidades, que se chamavam favelas. E ela sempre acreditou que a arte, a música, a dança é capaz de curar, de salvar. Eu conheci dona Margarida [Trindade, terapeuta ocupacional], mãe dela, que me ensinou, ela trabalhando com a [psiquiatra] dra. Nise [da Silveira], e as duas sempre trazendo pessoas, as mais variadas, gente do “palácio” e da favela, e todo mundo tinha o mesmo tratamento, mesmo cuidado delas, e ela [Raquel] sabia o que estava acontecendo com cada um. Raquel falava: ‘Ajuda fulano que está precisando disso’; ‘Vamos ver se a gente consegue uma ajuda para beltrano, porque está caindo’. Tem muito jovem por aí que está em liberdade [do caminho errado] porque a teve na vida. A arte dela é importante, a cultura dela é importante, ela foi uma ‘griô’, como se fala na linguagem da população negra, uma mestra no viver. Mas o querer dela de que as pessoas tivessem o direito de brilhar era muito forte, para essa comunidade, para mim, para todo mundo. Não era uma pessoa fácil – você [repórter do VERBO] a conheceu -, arrumava encrenca pra caramba, defendia as opiniões dela com unhas e dentes onde estivesse, não tinha problema nenhum em descontentar quem a tivesse convidado se algo não estivesse dentro do que aceitava como verdade. Mas era uma pessoa muito verdadeira, tinha muita verdade no seu portar, no agir. Isso foi um aprendizado para muita gente. Ela foi uma grande mestre. É isso.”
RAQUEL TRINDADE POR RENATO GONDA (artista plástico, ex-secretário de Turismo de Embu das Artes) – “Raquel Trindade já era em vida um símbolo para a cidade [Embu das Artes], um ícone. Ela agora falecendo, a gente vai ter que esperar um tempo para ver o tamanho que vai ficar. Mas Raquel é sinônimo de uma grande parte da cultura de Embu, grande parte da cultura da cidade surgiu e se mantém à sombra de Raquel Trindade. Ela sempre foi um esteio para os artistas, mas sempre fez questão de dizer que era apenas uma pessoa. A própria construção do teatro, o grande número de pessoas que aqui estão [durante o velório], ela foi construindo um processo para que ele [teatro] sobrevivesse a ela. Nesse sentido, acredito que não [a obra de Raquel não vai parar], as pessoas vão manter o trabalho, mas não só manter e louvar a memória de [Raquel]. A Raquel criou um processo cultural, uma máquina que se mantém, há [mais de] 40 anos existe o Teatro Solano Trindade, é um processo que não vai terminar com a Raquel. O Vitor Trindade, o filho, já é uma pessoa de extrema importância aqui, como também o Caçapava, como filho de coração, como também os quatro netos envolvidos. São várias gerações da família Trindade, além de todas as outras pessoas da cidade envolvidas. Outra coisa muito importante é que, apesar de a Raquel trabalhar durante toda a vida dentro do legado do Solano Trindade, da cultura negra, ela sempre fez questão de trabalhar a cultura não apenas negra – podemos ver aqui [no teatro] a multiplicidade de cores, de etnias. A Raquel não desenvolveu um trabalho exclusivo voltado à cultura negra, da qual é um imenso ícone. A cultura negra perdeu muito com a morte da Raquel, mas em Embu todas a reverenciam, independente de cor de pele, etnia, de religião, de vocação, Raquel é respeitada dentro de fora do universo da cultura negra. Isso vai permanecer com os filhos, com os netos, com todos os que trabalham o legado dela aqui em Embu.”
> Colaborou Adilson Oliveira, especial para o VERBO ONLINE, em Embu das Artes
> Compartilhe pela fanpage do VERBO ONLINE