Na ditadura, prefeito de Embu quis expulsar padre Jaime do país, mas teve que recuar, diz texto-tributo

Sacerdote irlandês que mudou a realidade de milhares de famílias do município enfrentou tentativa de intimidação, relata Comunidade de Clonlara, onde nasceu

Especial para o VERBO ONLINE

Padre Jaime no Brasil; ele foi ameaçado de expulsão do país por defender os pobres e vítimas do descaso de governantes, relata site da comunidade onde nasceu | Divulgação

Um prefeito de Embu ameaçou expulsar o padre Jaime Crowe do Brasil por ser cobrado a atender moradores vítimas de enchente, em 1981, ainda durante a ditadura, mas teve de recuar. É o que relata uma reportagem sobre a vida e o vasto legado de luta por justiça social do religioso irlandês que transformou a realidade de milhares de famílias – pobres – do município, publicado no último dia 16 por um site sobre o bairro de Clonlara (oeste da Irlanda), onde o sacerdote nasceu.

O texto, publicado pelo “Clonlara Community Heritage” (Patrimônio da Comunidade de Clonlara), é uma homenagem a James (apelidado Jim na família), Jaime entre os brasileiros. Com o título “Fr Jim Crowe – from Clonlara to the favelas of Brazil” (Padre Jim Crowe – de Clonlara para as favelas do Brasil), o tributo – que mereceu ser compartilhado pela Sociedade de São Patrício, a ordem religiosa do padre, na rede social – conta a trajetória de Jaime e o início da missão em Embu.

Ordenado padre em 1969, aos 24 anos, padre Jaime foi enviado ao Brasil para evangelizar em época de enfrentamento ao comunismo. Ele não aceitava tal ideologia, mas, ironicamente, foi o contato com o capitalismo na periferia da maior metrópole do país que o lançou em defesa dos necessitados – rejeitava um, mas não fechou os olhos em ver o outro, como descreveu, “aumentar a concentração de renda nas mãos dos ricos e levar os trabalhadores à extrema pobreza”.

Em Embu, aonde chegou em abril de 1970, padre Jaime viu a lógica com os próprios olhos – atentos. “Certa noite, fui visitar uma mulher que havia morrido no parto. Ela já tinha dez filhos. O marido dela não recebia salário havia dois meses da empresa em que trabalhava no Embu. Não havia nada na casa onde moravam. Não havia comida. Disseram que ela havia morrido no parto, mas, para mim, ela morreu de fome”, disse, sobre família no Jardim Elisa, em fala citada no texto.

O fato teve requinte de crueldade. “No dia em que a mulher morreu, fui convidado para uma festa de aniversário na casa do chefe do marido dela; onde o filho do chefe ganhou um Maverick de presente, que era o carro do ano”, contou padre Jaime. O sacerdote era tratado como parte do “sistema” e recebia do poder público para celebrar missas em bairros distantes. “Padre Jim não achava que essa fosse a atitude correta e não ia à Prefeitura para receber o dinheiro”, diz o texto.

Padre Jaime estava à frente da Paróquia Nossa Senhora do Rosário, no Centro, a única em Embu à época. Ao promover “círculos bíblicos” e levar os fiéis a comparar os textos da Bíblia com os fatos da vida, em confronto com a grande “miséria do povo”, ele – com o padre Eddie (Eduardo) McGettrick, também irlandês e da mesma ordem, e os leigos – começou a organizar as comunidades em torno de projetos sociais para reduzir a vulnerabilidade e melhorar a vida das famílias.

Segundo a publicação, os padres, com a ajuda da população, construíram salões comunitários, que durante a semana funcionavam como creches e eram usados para cursos bíblicos, treinamentos de liderança, assembleias coletivas, educação política e outros serviços. “Isso foi muito controverso e significou pisar no calo de políticos. O prefeito de Embu considerava o padre Jim um incômodo, pois suas ações conflitavam com as dos que estavam no poder”, diz o texto.

O prefeito em questão era Joaquim Mathias de Moraes, o Quinzinho. O ápice do conflito ocorreu no início dos anos 1980. Padre Jaime já comandava a Paróquia Todos os Santos na região do Santa Emília, que havia fundado em 1976 – ele passara a atender exclusivamente os bairros mais miseráveis de Embu. Em dezembro de 1981, famílias do Jardim Independência sofreram “terrível” enchente e, sem amparo da prefeitura, foram abrigadas pelo padre no salão da Igreja São Lucas.

Com os desabrigados “nervosos” e “chorando” por perderem “tudo”, conforme relatou, padre Jaime sugeriu que fizessem uma comissão para falar com o prefeito. Os moradores decidiram que ia “todo mundo” à prefeitura. Na reunião, pressionado, Quinzinho se irritou com um jovem que gravava a conversa e quis prender o rapaz. As famílias se revoltaram. O episódio saiu na imprensa nacional. Quinzinho considerou o padre Jaime como responsável pelo desgaste político.

“[O prefeito] decidiu expulsá-lo do país com a ‘lei do estrangeiro'”, diz o texto. De fato, de acordo com a “Folha de S. Paulo” de 4 de dezembro de 1981, Quinzinho disse que “o Departamento Jurídico da Prefeitura já está realizando estudos para verificar as medidas cabíveis”, “até mesmo o uso, contra o padre Jaime Crowe, do Estatuto dos Estrangeiros”. Um ano antes, com base no estatuto, o padre italiano Vito Miracapillo, que atuava no Nordeste, havia sido expulso do Brasil.

Quinzinho voltou atrás. “Quando a notícia se espalhou, uma missa foi realizada no centro de Embu das Artes, com a presença de todos os padres da região, e grande grupo de pessoas se reuniu para protestar. Podiam ser ouvidos gritando ‘ele não é estrangeiro nesta terra’. Esse protesto forçou o prefeito a recuar”, diz o tributo da “Comunidade de Clonlara”. Padre Jaime, que ainda serviu no Jardim Ângela (zona sul de SP), morreu em 2023, aos 77 anos, e 51 de “profetismo” no Brasil.

PUBLICAÇÃO-HOMENAGEM DO ‘CLONLARA COMMUNITY HERITAGE’ E COMPARTILHADA PELA ORDEM RELIGIOSA DO PADRE JAIME, QUE MARCOU EMBU

Reprodução | clique para ler texto original (em inglês)

comentários

>