ADILSON OLIVEIRA
Especial para o VERBO ONLINE, em Embu das Artes
A artista plástica, folclorista, coreógrafa, escritora, conferencista e ativista do movimento negro e das religiões afro-brasileiras Raquel Trindade, ícone da cultura de Embu das Artes, morreu na madrugada deste domingo (15) aos 81 anos, em São Paulo, em decorrência de uma infecção após cirurgia no coração. Ela será velada à tarde e noite de hoje no Teatro Popular Solano Trindade e sepultada nesta segunda-feira, a partir das 13h, no Cemitério do Rosário (centro).
Raquel tinha sido internada no dia 4 no InCor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas) para desobstrução arterial para normalizar o fluxo sanguíneo em veias do coração e depois permaneceu em casa em repouso, mas teve de voltar ao hospital na quinta-feira (12) devido a uma febre alta. Acometida de um aneurisma na aorta há pelo menos dois anos, ela aguardava a cirurgia desde o segundo semestre do ano passado, mas não resistiu à complicação do procedimento.
Filha do poeta e teatrólogo Solano Trindade e da coreógrafa e terapeuta Maria Margarida, a multiartista pernambucana Raquel – mas radicada em Embu há mais de meio século, desde 1961 – construiu uma trajetória que rendeu extrema admiração e largo reconhecimento, inclusive muitos prêmios. Após fundar com o pai o Teatro Popular Brasileiro, em Duque de Caxias (RJ), para onde a família se mudou ao deixar Recife, Raquel criou o próprio teatro dos Trindade.
“A família estabeleceu-se e adotou Embu no início dos anos 1960, e ela aqui permaneceu por mais de 50 anos. Após a morte do pai, Raquel criou o Teatro Popular Solano Trindade, e comandou a luta e ativismo cultural de Embu por décadas, levando o nome da cidade para o mundo inteiro. Por seu trabalho, foi professora convidada na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas, SP] e universidades do Rio”, diz o historiador Márcio Amêndola, amigo da artista.
Ao receber o VERBO em casa para entrevista em 2013, Raquel lembrou com grande carinho a experiência acadêmica, apesar de descriminada. “De 1987 a 1992, dei aula na graduação, e vi que só tinha um negro na arte cênica. Pedi para abrir curso de extensão para abranger outras pessoas, negro, branco, japonês… Vieram pessoas de outra graduação, e negros funcionários e a comunidade negra de Campinas, o curso teve um número enorme de alunos”, recordou.
“O grupo completou 25 anos, agora a própria comunidade continua o trabalho. De vez em quando, eles vêm me buscar para esclarecer algum ponto ou falar de outras danças que estão fazendo, mas já estão pesquisando eles mesmos. Esse é o meu interesse”, disse Raquel, sem esquecer que, diante de professores com mestrado e doutorado e ela sem “ado” nenhum – só com “segundo clássico” (ensino médio apurado) -, não teve o nome incluído em trabalho acadêmico.
Raquel não recuou e foi ativista cultural pela afirmação da identidade negra e no combate ao preconceito, por exemplo nos anos 2000. Convidada a fazer um “Carnaval bonito”, Raquel disse ter ouvido do secretário Jean Gillon (Turismo) que fosse “atender essa gentinha lá fora”. Ela reagiu e acusou “apartheid”. Solicitada a se retratar pelo prefeito Geraldo Cruz (PT), respondeu: “Para esse ‘fascistão’ vou pedir desculpa? Prefiro pedir demissão e derrubar ele’. Foi o que fiz”, disse.
Alguém que tinha como “partido” a cultura, e não “lado político” embora com formação de esquerda – baseada na Bíblia e o “Capital” (Karl Marx) junto -, Raquel se indispunha com políticos quando a causa era negligenciada. Ela voltou logo a dialogar com Geraldo e na última campanha eleitoral declarou apoio ao petista. Teve rusgas ainda com a gestão Chico Brito (ex-PT), mas era grata pela inclusão de aula da identidade cultural afro-brasileira na rede municipal de ensino.
Em 2004, Raquel publicou o livro “Conto, canto e encanto com a minha história… Embu” (Ed. Noovha América), na qual relata toda a história das artes de Embu e seus personagens. Também publicou diversos livros sobre o pai, Solano, com poemas de uma das mais eloquentes vozes negras no país. Naquele ano, criou o bloco carnavalesco Kambinda – como também é chamada -, que sai em cortejo nas ruas no centro histórico, com elementos do candomblé, do qual é adepta.
Raquel também era “antenada” sobre a produção comercial acerca da cultura africana. Ao participar de evento pelo Dia da Consciência Negra no Jardim Casa Branca, periferia de Embu, em 2015, ela disse ao VERBO que a novela “Os Dez Mandamentos” retrata os faraós, título dos reis do Antigo Egito, de forma equivocada. Pelo vasto trabalho e obra, em 2007, recebeu das mãos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a Ordem do Mérito Cultura da República.
Artista e ativista da “resistência”, legado dos pais e avós, com quem aprendeu que deveria ter orgulho de ser negra, de quem recebeu espécie de “transfusão” da cultura afro-brasileira, Raquel dizia que “a história do negro é muito forte, muito bonita, a gente tem muito o que contar”. O governo Ney Santos (PRB) lamentou a morte de Raquel. A Câmara Municipal decretou luto oficial. “Palavra de hoje: vazio”, disse a nora Elis Sibere. Raquel deixa três filhos e sete netos.
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