Especial para o VERBO ONLINE, em Embu das ArtesRaquel transborda de gratidão ao grande poeta Solano Trindade, o pai, e à coreógrafa e terapeuta Maria Margarida Trindade, a mãe, além dos singulares avós, com quem aprendeu que deveria ter orgulho de ser negra, de quem recebeu educação sólida e espécie de “transfusão” da cultura afro-brasileira, condições que aponta para superação do preconceito contra o negro. “O Dia da Consciência Negra é necessário porque existe discriminação racial”, diz a artista plástica, folclorista, escritora e ativista negra nascida em Pernambuco, mas radicada em Embu desde 1961.
Raquel, 77, que hoje ministra curso de formação da identidade cultural afro-brasileira na rede municipal de ensino de Embu das Artes – com incursão em nove escolas -, fala sobre a realidade do negro no país, a experiência de lecionar e a resistência de professores em universidade paulista e a discriminação que sofreu por parte do secretário de Turismo em 2001, no governo do prefeito Geraldo Cruz (PT), hoje deputado estadual. Ela recebeu o VERBO em sua casa, no centro do município, para esta “Entrevista da Semana”, a do Dia da Consciência Negra, comemorado nesta quarta.
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VERBO ONLINE – Para a sra., qual o significado do Dia do Consciência Negra?
Raquel Trindade – É muito importante. A gente revê toda a história do negro não só no Brasil, mas desde a África, a luta nossa, das entidades negras, a luta do negro para sobreviver num país onde a discriminação é muito grande, e parece que a cada dia fica maior. É necessário o feriado, para que todo o Brasil reflita sobre esse dia. Mas o Dia da Consciência Negra são todos os dias.
VERBO – Há quem diga que o Dia da Consciência Negra é desvirtuado por grande parte da população brasileira, que aproveita o feriado [onde é decretado] para atividades que não a valorização da cultura negra.
Raquel – Existem muitos movimentos negros que nesta semana estão trabalhando muito sobre o tema. Claro que em um país onde a discriminação aumenta mais… Veja o caso do Paraná, em Curitiba não deixaram ter o feriado com a preocupação mercantil, do dinheiro, mas é por causa da discriminação, outros feriados não são proibidos, por que só o da Consciência Negra? Por isso, gostamos da lei 10.639 [que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira no ensino fundamental e médio no país], para fazer com que a população acorde para a preocupação de conhecer o negro e aumente a autoestima do negro, não haja tanta discriminação por parte dos brancos. E não é só com o negro, é com o índio, judeu, árabe, com todas as etnias. Eu acho graça um país mestiço como o nosso ter tanta discriminação de todo tipo.
VERBO – Desculpe-me insistir, mas grande parte das pessoas, no feriado, vai para praia, onde, ironicamente, tem pessoas trabalhando, em situação informal, que são na maioria negras. Como vê essa realidade?
Raquel – O Brasil é um país muito complexo, onde ainda poucos ganham muito e muitos outros não ganham nada. Essa gente que está na praia vendendo, de maneira precária, é porque tem necessidade, e isso faz parte dos problemas do negro, em geral, cujo poder aquisitivo é menor, a educação é mais fraca – agora que está melhorando. Agora, alguns vão para a praia para saudar Iemanjá, e outros vão para se divertir, para aproveitar o feriado. Mas para a consciência sobre o negro aumente é necessário, por exemplo, o que a Prefeitura de Embu está fazendo, assinamos um convênio junto com eles para [divulgar] a identidade cultural afro-brasileira.
VERBO – Qual a importância da iniciativa?
Raquel – Promover a autoestima do negro e terminar com a discriminação do branco contra todas as etnias, inclusive a do negro. A gente conversa com os professores, fala que hoje está provado cientificamente que o primeiro homem nasceu na África, sobre as grandes civilizações africanas, que o Egito já fazia operação de cérebro, já tinha escrita, os hieroglifos, já construía as grandes pirâmides; que Gana já tinha uma escrita; que no Quênia já se fazia operação cesariana, já se forjava o ferro; Zimbábue já tinha grandes construções… Então, não somos um povo primitivo, tínhamos uma civilização, que foi tomada de maneira bruta, e nos fizeram escravos. Não éramos escravos, fomos escravizados. Tudo isso é muito complexo, mas é necessário que os professores saibam… Tivemos grandes líderes negros, os grandes escultores do Brasil colonial como o Mestre Valentim [Valentim da Fonseca e Silva (1745-1813)], o próprio Aleijadinho [Antônio Francisco Lisboa (1730-1814)]. Houve as revoltas, [a de] Zumbi [em Palmares, em Alagoas], mas não só, a dos Malês [negros de origem muçulmana, em 1835, em Salvador], e em 1910 a revolta da Chibata [contra açoite a marinheiros], com João Cândido [almirante negro que reagiu aos castigos], que vai ser comemorada no dia 22. A história do negro é muito forte, muito bonita, a gente tem muito o que contar.
VERBO – Como são as aulas?
Raquel – Eu dou a teoria junto com meu filho, [o compositor] Vitor da Trindade. Ele, [o percussionista] Manuel Trindade, [o rapper] Zinho Trindade, meus netos, o babalorixá [sacerdote do candomblé] Adailson Jacobina, Carla Magalhães, Cícera França e Camilo Borba dão a parte prática da dança, e a papelada [administração, quem cuida] é o Marcelo Tomé [artista circense], meu neto [de criação]. Passei tudo o que sei para eles, que me ajudam nesse trabalho, primeiro passando para os professores e depois para os alunos, indo de escola e escola. Tivemos a aprovação unânime na Câmara, e o prefeito [Chico Brito] e a Secretaria de Educação têm nos dado todo o apoio.
VERBO – O que esse projeto [curso de formação da identidade afro-brasileira] representa para a família Trindade?
Raquel – Ah, é muito bom. A história da minha família vem desde os meus avós. Eu tinha um avô maravilhoso, Manoel Abílio Pompilho da Trindade, em Pernambuco. Ele chegava do trabalho, pegava o violão, botava os netos ao redor e contava histórias africanas, histórias sem fim. Minha avó paterna, Emerenciana de Jesus Trindade, era uma mistura de índio e negro. A materna, Damázia Maria do Nascimento, dançava maracatus. Meu pai, poeta, ator, teatrólogo, pintor, Francisco Solano Trindade. Além da arte, ele conversava – eu criança – sobre política, me levava para assistir a espetáculos, ao [Teatro] Municipal. Ele me dizia: “Você tem que conhecer cultura negra e cultura branca, para ter conhecimento geral”. Minha mãe, Maria Margarida da Trindade, que era terapeuta ocupacional e trabalhou com a doutora Nise da Silveira [psiquiatra] no Museu da Imagem do Inconsciente [no Rio], me ensinou todas as danças. com exceção da do candomblé, ela era [cristã] presbiteriana – papai era comunista, em casa era sempre a Bíblia e o “Capital”, de Karl Marx, junto. Ela dizia [sobre as figuras bíblicas] que Míria tocava pandeiro, Davi, harpa, Salomão fazia poesia. Pôde me ensinar maracatu, coco, lundu, jongo, bumba-meu-boi, tudo foi ela que me ensinou. E me ensinou também a não beber, não fumar, não falar palavrão, eu tive uma orientação muito forte, e tudo isso passei para os meus filhos e netos – são três filhos e dez netos, e já tenho dois bisnetos, e mais um outro está a caminho.
VERBO – A família Trindade deixou raízes…
Raquel –Meu pai criou, com minha mãe e [o sociólogo] Édison Carneiro, o Teatro Popular Brasileiro [em 1950, em Duque de Caxias, RJ]. Fomos para a Europa, para o Leste Europeu dançar. Depois que ele falece, em 74, eu crio, um ano depois [em Embu], o Teatro Popular Solano Trindade, que abrange todo o folclore nacional. O teatro vai fazer 39 anos.
VERBO – Quando chegaram a Embu?
Raquel – Meu pai e eu e mais 30 artistas chegamos a Embu em 1961. Tínhamos vindo a São Paulo fazer um espetáculo, e Embu já tinha o Sakai [escultor Tadakiyo Sakai, o Mestre Sakai (1914-1981)], o Cássio M’Boy [pintor e escultor (1903-1986)], o Assis [Claudionor Assis, o Mestre Assis, pintor e escultor (1931-2006)] e a Azteca [pintora Josefina Azteca]. Sakai disse para o Assis ir a São Paulo conhecer Solano para que pudesse retratar a cultura negra na escultura, e o Assis nos convidou para vir. Quando chegamos, Embu era a coisa mais linda, o Santa Luzia, o Sílvia [bairros na área central] eram tudo mata, o rio que passa aqui [do outro lado da calçada] tomava toda a rua e era muito limpo, a praça da Lagoa era a própria lagoa. E papai e Assis começaram a fazer festas que duravam três dias, dançávamos e pintávamos pela rua. No começo houve discriminação racial, éramos um grupo de 30 negros, mas depois foram aceitando mais.
VERBO – Como foi lecionar na Unicamp? A sra. sofreu resistência. Era racial?
Raquel – O problema lá não foi racial. Tinha sido convidada pelo Antônio Nóbrega para [o departamento] dança, para fazer o candomblé, a dança dos orixás. O [então diretor] Celso Nunes gostou e me convidou para artes cênicas, e passei a dar [aula de] folclore, teatro negro no Brasil e sincretismo religioso na graduação, e fez muito sucesso. Eu não tenho nível universitário, tenho segundo clássico [ensino médio apurado]. Entrei como técnico-didata e passei a professor-adjunto, e muitos professores não gostaram, eles todos com mestrado, doutorado, e eu sem “ado” nenhum, criou-se um clima. Um professor, a quem ensinei tudo de folclore, depois de estar já dez anos lá, na hora de fazermos um relatório, pôs tudo como se fosse trabalho dele, o diretor na época deixou cair os papéis, e vi que ele tinha me tirado do meu trabalho. Fiquei muito triste. Eu estava com câncer, e muito desgostosa, pedi demissão.
VERBO – Mas a sra. disse que a experiência foi um sucesso…
Raquel – De 1987 a 1992, dei aula na graduação, e vi que só tinha um negro na arte cênica. Então, pedi para abrir um curso de extensão para abranger outras pessoas, negro, branco, japonês… Vieram pessoas de outra graduação, e negros funcionários e a comunidade negra de Campinas, o curso teve um número enorme de alunos. Já em 1988, tivemos a ideia de criar um grupo, o Urucungos, Puítas e Quinjengues, instrumentos de origem banto que vieram [trazidos pelos escravos] para São Paulo. Urucungo é um berimbau de cabaça grande, puíta, uma cuíca de madeira, e quinjengue, um atabaque afunilado. O grupo completou 25 anos, agora a própria comunidade continua o trabalho. De vez em quando, eles vêm me buscar para esclarecer algum ponto ou falar de outras danças que estão fazendo, mas já estão pesquisando eles mesmos. Esse é o meu interesse. A Unicamp me mandou uma carta muito bonita falando do meu trabalho.
VERBO – A Raquel Trindade já sofreu discriminação racial?
Raquel – O negro em geral sofre tudo que é preconceito. São muitas histórias, mas uma discriminação [entre as mais sérias] que sofri foi aqui no Embu mesmo, na época em que Geraldo Cruz me convidou para trabalhar – junto com o Assis, o [artista plástico] Gileno Bahia – no Turismo, que tinha como secretário o Jean Gillon [morto em 2007, aos 87 anos]. Geraldo tinha me pedido para reunir o pessoal e fazer um Carnaval bonito, e ele [secretário] virou para mim e disse: ‘Vou botar uma mesinha na rua para você atender essa gentinha lá fora’. Eu falei: “Você é louco, isso é apartheid, não vou fazer isso!” Quando ele entrou [na secretaria], eu o vi comentar com uma pessoa: “Negro não pensa, não tem cérebro, e não faz arte, faz macaquice”. Ele era romeno, até achei estranho um judeu ter preconceito racial, mas acontece. Procurei o Geraldo, que na hora não falou nada. Ele fez uma reunião com todo o Turismo e falou: “Raquel, essa reunião é para você pedir desculpas para o Jean Gillon”. Eu falei: “Para esse ‘fascistão’ vou pedir desculpa? Você não me conhece, prefiro pedir demissão e derrubar ele”. Foi o que eu fiz.
VERBO – Como aconteceu?
Raquel – Uma amiga que tinha o jornal “Conexão” o entrevistou, e ele repetiu tudo, por ser loira, ele achou que ela não ia ligar. E na época, Lula vinha para cá [Embu], e mandaram uma moça aqui para que almoçasse comigo, no mesmo horário em que ele vinha. Estavam com medo que eu contasse para o Lula, que me conhecia. Fui avisado por um neto e fui à prefeitura, que era ainda no prédio que hoje é o centro cultural [Mestre Assis]. Ele estava na parte de cima [sacada], e o chamei: “Lula, quero falar com você”. Quando o Lula desceu, todo mundo desceu atrás. Ele falou: “O que foi?” Falei: “Discriminação no Turismo…”. Ele falou: “Geraldo, como você deixa uma coisa dessa, você esquece o trabalho do Solano, da Raquel?” Geraldo disse: “Não, vou dar um jeito”. Mas não deu. Precisamos ir à Câmara, onde o secretário ia falar. Ele não repetiu as mesmas palavras, mas falou que o meu grupo mentiu, invadiu o Turismo, fez vandalismo, mas o meu grupo era de pessoas muito educadas, nunca faria isso. Colocamos a fita [da entrevista] com tudo o que tinha dito, foi um rolo. Aí não teve jeito, o Geraldo o demitiu. Fiz queixa contra ele na delegacia e chamei dois advogados. Quando viram que eu ganhar [a causa], quiseram que eu tirasse dinheiro do Jean Gillon. Eu sempre fui pobre, tive só o suficiente para viver. Falei: “Vocês não me entenderam, não me interessa dinheiro, só quero que ele não faça mais isso com negro nenhum, nem índio. Mas a discriminação é constante, de o segurança não ir atrás de ninguém e ir atrás do negro quando entra numa loja.
VERBO – Está dizendo em relação à sra. mesmo…
Raquel – Sim, a mim mesma. Aqui no centro de Embu quando entrava em um restaurante, uma mulher começou a gritar: “Você roubou a minha bolsa!” Faz um ano. Falei: “Você é louca, estou entrando agora, como eu roubei a sua bolsa?” Todo mundo olhando. A dona do restaurante, que me conhece, falou: “Impossível, a Raquel não faria isso”. A garçonete achou a bolsa debaixo da mesa. Eu dei nela, eu queria que chamassem a polícia, como ninguém chamou, dei um tapa nela para valer. É uma loucura, a discriminação é tão forte que não pensam.
VERBO – Como combater a discriminação racial nos dias de hoje?
Raquel – Primeiro, o próprio negro ter orgulho de ser negro.
VERBO – É o grande drama o próprio negro ter o sentimento de inferioridade?
Raquel – É. Acontece que a mídia mostra que tudo que é bom é branco, tudo que é ruim é negro. As mulheres negras começam a alisar o cabelo porque acham que só são bonitas se tiverem as características do branco, os meninos negros começam a imitar tudo o que é do branco porque é jogado em cima deles que tudo que é do branco é superior e tudo que é do negro é inferior. E nem todos tiveram a sorte de ter pais como eu tive, que sentavam comigo e falavam que eu tivesse orgulho de ser negra. E que nem todo branco é racista também, fazer o racismo ao contrário. Tem muito branco que é consciente [da igualdade racial], amigo do negro. Depois, o combate ao racismo se faz com educação, para conhecer a sua cultura, sua história, para que saiba que [a igualdade ou desigualdade racial] depende do meio em que é criado, e infelizmente a maioria dos negros está em um meio muito degradante.
VERBO – O Dia da Consciência Negra será sempre necessário no Brasil?
Raquel – É como a cota [reserva de vagas em instituições de ensino a grupos classificados por etnia, como a do negro]. Ela é necessária porque existe a discriminação racial. O Dia da Consciência Negra é necessário porque existe a discriminação racial.