Papa Francisco e os peregrinos alados: um pequeno ensaio de avaliação

Especial para o VERBO ONLINE

Papa Francisco

FERNANDO ALTEMEYER JÚNIOR

O papa Francisco bateu na porta de nosso coração e entrou de mansinho. Sereno e sempre de janelas abertas, se fez peregrino. E o povo carioca o amou de paixão! E Francisco lhes retribuiu com o sorriso que nasce no coração do Cristo Redentor. Quais os frutos a colher? A esperança em oito facetas evangélicas, nascida no amor de Deus, e transmitida de forma visceral por este querido argentino. O futuro exigirá reabilitar a política, a fé e a esperança! Daí o pedido e o imperativo categórico do papa aos jovens na missa final em Copacabana: “Queridos jovens, regressando às suas casas, não tenham medo de ser generosos com Cristo, de testemunhar o seu Evangelho”. As felicidades de Francisco são as mesmas bem-aventuranças de Jesus e promovem a cultura do encontro e do diálogo.

A primeira felicidade vital do papa: “Felizes os pobres de espírito: deles é o Reino dos céus (Mt 5,3)”. Os pobres da comunidade de Varginha foram os interlocutores do encontro de Francisco com o povo brasileiro. Entrou em uma casa, abraçou e foi beijado, orou com os evangélicos, tocou e foi tocado. Ganhou a bandeira da pastoral de juventude e o anel de tucum. Faltou elogiar as CEBs e a Teologia da América Latina. O povo ficou encantado com o jeito de Jorge Mario Bergoglio, pois viu nele um compadre fiel de lutas e utopias. Não era mais estrangeiro, mas o amigo do peito, companheiro. Ele se fez um “papa cireneu”, que ajuda na peleja do viver a enfrentar as cruzes da injustiça.

A segunda felicidade do sucessor de Pedro: “Felizes os mansos: receberão a terra em herança (Mt 5,4)”. Os mansos são aqueles que o são não tanto por temperamento, mas pela dura necessidade da sua condição social e política. O afago, o abraço de muitas crianças pelas ruas cariocas, chegou ao clímax naquele menino de doze anos, que aos prantos o abraça repleto de felicidade cordial. Os mansos se exercitam na mansidão e se reconhecem. Mansos repletos da candura das crianças. E este pode ser o caminho de uma nova política: “ouvir o povo, dialogar com todos, respeitar as diferenças”, com serenidade e mansidão, dando prioridade às crianças, aos anciãos e aos jovens.

A terceira felicidade de Jorge Mario Bergoglio: “Felizes os que choram: eles serão consolados (Mt 5,5)”. Aquele que sofre e é injustiçado, que perde a esperança. Ao ouvir o papa na Via-crúcis na praia de Copacabana, parecia-nos ouvir a ária “Una furtiva lacrima”, último ato da ópera O elixir do amor, de Gaetano Donizetti, quando canta: “Uma lágrima furtiva irrompe de seus olhos. Jovens festivos parecem invejá-la. O que mais devo eu buscar. Me ama: eu o vejo! Um só instante e o palpitar de seu coração posso sentir. Seus suspiros se confundem com os meus. Ó Céus, posso morrer! Mais eu não peço!”

O papa disse haver uma conexão misteriosa entre a cruz de Jesus e a cruz dos jovens. Jesus em sua cruz carrega todos os nossos medos mais profundos e o nosso choro mais doído!

A quarta felicidade de Francisco: “Felizes os que têm fome e sede de justiça: eles serão saciados (Mt 5,6)”. Ter fome de justiça é a atitude de quem é um eleito de Deus. Ter fome de justiça é parte fundamental da fé bíblica. O papa não veio para adormecer com discursos melosos e suaves. Veio incomodar as elites e os grupos que oprimem o povo. Veio propor que os jovens caminhem alegres e rebeldes na estrada da justiça. Que façam barulho e mexam com as estruturas obsoletas da sociedade e das Igrejas. Afinal, o sentido ético é um desafio sem precedentes, diz Francisco. O papa foi valente e quer cristãos valentes e sem arrogância. Lutadores e profetas, com memória história, pé no chão e projetos de transformação. Organizados, pois “Quando enfrentamos juntos os desafios, então somos fortes, descobrimos recursos que não sabíamos que tínhamos”.

A quinta felicidade do bispo de Roma: “Felizes os misericordiosos: eles alcançarão misericórdia (Mt 5,7)”. Esta é a felicidade central da vida e do programa de bispo de Francisco, pois ele sabe que quem possui compaixão assume o outro como irmão de verdade. A misericórdia é filha de Deus. E o amor misericordioso não é raquítico nem efêmero. É amor abundante, generoso, forte, feliz, pleno e transbordante. Deus dá Deus. Como diz a bela melodia de padre Zezinho: “Por um pedaço de pão e um pouquinho de vinho, Deus se tornou refeição e se fez o caminho”. Francisco pediu, exigiu, conclamou bispos e padres a saírem das sacristias, a irem para as periferias, para serem impregnados do cheiro das ovelhas e do povo de Deus.

A sexta felicidade do papa argentino: “Felizes os corações puros: eles verão a Deus (Mt 5, 8)”. A limpeza e pureza de coração é o coração sincero. Francisco falou para a presidente da Republica, aos indígenas, ao prefeito do Rio, para a elite e para os milhões nas ruas. Aos 500 mil jovens da Jornada e aos 1500 clérigos e religiosas na Catedral. Não foi jogo de marketing, nem teologia da prosperidade. Não propôs proselitismo e muito menos confronto com os irmãos evangélicos. Apresentou o Evangelho de Cristo, como testemunho pessoal e qualitativo de um cristão e pastor engajado pela fé e na fé. Francisco quis estar na verdade mais do que afirmar-se dono ou possuidor exclusivo dos tesouros da revelação.

A sétima felicidade do filho de imigrantes: “Felizes os que agem em prol da paz: eles serão chamados filhos de Deus (Mt 5,9)”. O papa Francisco não proclamou a paz covarde ou uma ausência de conflitos. Não rezou por uma paz de cemitério ou pela covarde e resignada religião de subserviência ou de preces fundamentalistas. Propôs uma paz inquieta, rebelde, criativa, sonhadora. Paz onde a pessoa humana é o método, a chave e a meta. A dignidade humana como critério divino: a glória de Deus é que o pobre tenha vida! Gritou a cada momento nesta semana no Brasil, contra a corrupção das elites e das instituições e clamou por uma justa distribuição das riquezas no mundo. E disse ao clero brasileiro: tenham a coragem de ir contra a corrente que transforma pessoas em objetos descartáveis. A idolatria é fruto da injustiça social e um maldito sinal que nega vida ao povo negro, aos moradores das periferias e aos camponeses, mulheres, idosos e às crianças.

A oitava felicidade do devoto de Maria: “Felizes os perseguidos por causa da justiça: deles é o Reino dos Céus (Mt 5, 10)”. Na sua primeira visita internacional nos lembrou do vigor profético de dom Helder Camara e do amor preferencial de Luciano Mendes de Almeida. Hoje o papa Francisco fortalece a fé de quem ficou ao lado dos empobrecidos, ao lado do Cristo crucificado pelo regime ditatorial. Falou da teimosia evangélica. Celebrou a vida dos que deram a vida: vidas pela vida. Faltou recordar a entrega de tantos mártires de nossa Igreja latino-americana como dom Oscar Arnulfo Romero y Gadamez, Frei Tito Alencar Lima, padre Henrique Pereira Neto, irmã Dorothy Stang, Santo Dias da Silva e o jovem torturado Alexandre Vannucchi Leme, entre centenas que entregaram a vida pelos pobres. Será preciso viver obedientes no amor e na fidelidade sem olvidar as testemunhas. Amor verdadeiro é memória celebrada do sangue derramado, como Cristo na cruz.

Santa Teresinha de Lisieux escrevia para sua irmã Léonie: “A única felicidade na terra é aplicar-se em achar deliciosa a parte que Jesus nos dá (12.08.1897)”. O papa Francisco abriu o nosso imenso apetite para degustar os deliciosos quitutes de Deus. Ao tocar nossa carne, nossa pele, nossa vida, nossa praia ele mexeu com o nosso coração. Ao andar pelas ruas no meio de inverno glacial esquentou a nossa esperança. Nunca mais o Brasil será o mesmo. Os cristãos puderam degustar um gostoso aperitivo da fé. Façamos agora a nossa feijoada. Os ingredientes, já temos. Basta botar fogo na panela e água no feijão, para que ninguém fique excluído! Ninguém mais fora da vida pública! Ninguém fora da mesa da cidadania. Cada qual tornando a fé livre e libertadora, com jeitinho franciscano e sotaque carioca. Ouvimos um convite quente: seguir a Jesus. De forma convicta e apaixonada! O coração da mensagem do papa: sair do centro para a margem, rompendo casulos, para alçar voo de peregrino destemido, envolto no mistério de Deus. Como cantava o poema musical de Ednardo: “Pavão misterioso/ Pássaro formoso/ Tudo é mistério/ Nesse teu voar/ Ai se eu corresse assim/ Tantos céus assim/ Muita história/ Eu tinha pra contar…”.

Vai com Deus papa Francisco, te cuida! Volta logo, pois sentiremos muitas saudades de Tu, “mermão Chico”! Tu és sangue-bom! Por enquanto, até Cracóvia, em 2016.

Fernando Altemeyer Junior, teólogo, é professor da PUC-SP

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